Os dois bonitos e os dois feios – Rachel de Queiroz
Nunca se sabe direito a razão de um amor. Contudo, a mais frequente é a
beleza. Quero dizer, o costume é os feios amarem os belos e os belos se
deixarem amar. Mas acontece que às vezes o bonito ama o bonito e o feio o feio,
e tudo parece estar certo e segundo a vontade de Deus, mas é um engano.
Pois o que se faz num caso é apurar a feiúra e no outro apurar a
boniteza, o que não está certo, porque Deus Nosso Senhor não gosta de
exageros; se Ele fez tanta variedade de homens e mulher neste mundo é
justamente para haver mistura e dosagem e não se abusar demais em
sentido nenhum. Por isso também é pecado apurar muito a raça, branco só
querendo branco e gente de cor só querendo os da sua igualha - pois para
que Deus os teria feito tão diferentes, se não fora para possibilitar
as infinitas variedades das suas combinações?
O caso que vou contar é um exemplo: trata de dois feios e dois bonitos
que se amavam cada um com o seu igual. E, se os dois bonitos se
estimavam, os feios se amavam muito, quero dizer, o feio
adorava a feia, como se ela é que fosse a linda. A feia, embalada com
tanto amor, ficava numa ilusão de beleza e quase bela se sentia, porque
na verdade a única coisa que nos torna bonitos aos nossos olhos é nos
espelharmos nos olhos de quem nos ame.
Vocês já viram um vaqueiro encourado? É um traje extraordinariamente
romântico e que, no corpo de um homem alto e delgado, faz milagres. É a
espécie de réplica em couro de uma armadura de cavaleiro. Dos pés à
cabeça protege quem a veste, desde as chinelas de rosto fechado, e as
perneiras muito justas ao relevo das pernas e das coxas, o guarda-peito
colado ao torso, o gibão amplo que mais acentua a esbelteza do homem e
por fim o chapéu que é quase a cópia exata do elmo de Mambrino. Aliás,
falei que só assenta roupa de couro em homem magro e disse uma
redundância, porque nunca vi vaqueiro gordo. Seria mesmo que um toureiro
gordo, o que é impossivel. Se o homem não for leve e enxuto de carnes,
nunca poderá cortar caatinga atrás de boi, nem haverá cavalo daqui que o
carregue.
Os dois heróis da minha história, tanto o feio
como o bonito, eram vaqueiros do seu ofício. E as duas moças que eles
amavam eram primas uma da outra - e apesar da diferença no grau de
beleza, pareciam-se. Sendo que uma não digo que fosse a caricatura da
outra, mas era, pelo menos, a sua edição mais grosseira. O resto de
índia, os olhos amendoados, a cor de azeitona rosada da bonita,
repetidos na feia, lhe davam uma cara fugidia de bugra; tudo que na
primeira era graça arisca na segunda se tornava feiúra sonsa.
De repente, não se sabe como, houve uma alteração. O bonito,
inexplicavelmente, mudou. Deixou de procurar a sua bonita. Deu para
rondar a casa da outra, a princípio fingindo um recado, depois nem mais
esse cuidado ele tinha. Sabe-se lá o que vira. No fundo, talvez
obedecesse àquele abençoada tendência que leva os homens bonitos em
procura das suas contrárias; benza-os Deus por isso, senão o que seria
de nós, as feiosas? Ou talvez fosse porque a bonita, conhecendo que o
era, não fizesse força por sustentar o amor de ninguém. Enquanto a pobre
da feia - todos sabem como é - aquele costume de agrado e, com o uso da
simpatia, descontar a ingratidão da natureza. E embora o seu feio
fosse amante dedicado, quanto não invajaria a feia da beleza do outro,
que a sua prima recebia como coisa tão natural, como o dia ser dia e a
noite ser noite. Já a feia queria fazer o dia escuro e a noite clara - e
o engraçado é que o conseguiu. Muito pode quem se esforça.
O feio logo sentiu a mudança e entendeu tudo.
Passou a vigiar os dois. Se esta história fosse inventada poderia dizer
que ele, se vendo traído, virou-se para a bonita e tudo se consertou.
Mas na vida mesmo as pessoas não gostam de colaborar com a sorte. Fazem
tudo para dificultar a solução dos problemas, que, às vezes, está na
cara e elas não querem enxergar. Assim sendo, o feio
ficou danado da vida, e nem se lembrou de procurar consolo junto da
bonita desprezada; e esta, se sentindo de lado, interessou-se por um
rapaz bodegueiro que não era bonito como o vaqueiro enganoso, mas tinha
muito de seu e podia casar sem demora e sem condições.
Assim, ficaram em jogo só os três. O feio cada
dia mais desesperado. A feia, essa andava nas nuvens, e toda vez que o
"primo" (pois se tratavam de primos) lhe botava aqueles olhos verdes -
eu falei que além de tudo ele ainda tinha os olhos verdes? - ela pensava
que ia entrar de chão adentro, de tanta felicidade.
Mas o pior é que os dois vaqueiros ainda saíam todo o dia juntos para o
campo, pois eram campeiros da mesma fazenda e se haviam habituados a
trabalhar de parelha, como Cosme e Damião. Seria impossivel se separarem
sem que um dos dois partisse para longe, e, é claro, nenhum deles
pretendia deixar o lugar vago ao outro.
Assim estava a intriga armada, quando a feia, certa noite, ao conversar
na janela com o seu bonito que lá viera furtivo, colheu um cravo
desabrochado no craveiro plantado numa panela de barro e posto numa
forquilha bem encostada à janela (era uma das partes dela, ter todos
esses dengues de mulher bonita) e enquanto o moço cheirava o cravo, ela
entrefechou os olhos e lhe disse baixinho:
- Você sabe que o outro já lhe jurou de morte?
(Vejo que esta história está ficando muito comprida - só deixando o resto para a semana que vem.)
Falei que o desprezado jurara de matar o traidor. Seria verdade? Quem
sabe as coisas que é capaz de inventar uma mulher feia improvisada em
bonita pelo amor de dois homens, querendo que o seu amor renda os juros
mais altos de paixão?
O belo moço assustou. Gente bonita está habituada a receber da vida tudo
a bem dizer de graça, sem luta nem inimizade, como seu direito natural,
que os demais devem graciosamente reconhecer. As mulheres o queriam, os
homens lhe abriam caminho. E não é só em coisas de amor: de pequenino, o
menino bonito se habitua a encontrar facilidades, basta fazer um beiço
de choro ou baixar um olho penoso, todo o mundo se comove, pede um
beijo, dá o que ele quer. Já o feio chora sem
graça, a gente acha que é manha, mais fácil dar-lhe uns cascudos do que
lhe fazer o gosto. Assim é o mundo, e se está errado, quem o fez foi
outro que não nos dá satisfações.
Pois o bonito assustou. Deu para olhar o outro de revés, ele que antes
vivia tão confiado, como se achasse que a obrigação do coitado era lhe
ceder a menina e ainda tirar o chapéu. Passou a ver mal em tudo. De
manhã, ao montar a cavalo, examinava a cilha e os loros, os quatro
cascos do animal. Ele, que só usava um canivete quando ia assinar
criação, comprou ostensivamente uma faca, afiou-a na beira do açude, e
só a tirava do cós para dormir. E quando saía a campo com o companheiro,
em vez de irem os dois lado a lado, segundo o costume, marchava atrás,
dez braças aquém do cavalo do outro.
O feio não falava nada. Fazia que não enxergava
as novidades do colega. Como sempre andara armado, não careceu comprar
faca para fazer par com a peixeira nova do rival. E, sendo do seu
natural taciturno, continuou calado e fechado consigo.
E o outro - nós mulheres estamos habituadas a pensar que todo homem
valente é bonito, mas a recíproca raramente é verdade, e nem todo bonito
é valente. Este nosso era medroso. Era medroso mas amava, o que o punha
numa situação penosa. Não amasse, ia embora, o mundo é grande, os
caminhos correm para lá e para cá. Agora, porém, só lhe restava amar e
ter medo. Ou defender-se. Mas como? O rival não fazia nada, ficava só
naquela ameaça silenciosa; as juras de morte que fizera - se as fizera -
de juras não tinham passado ainda. Meus Deus, e ele não era homem de
briga, já não disse? Tinha a certeza de que se provocasse aquele alma
fechada, morria.
Bem, as juras eram verdadeiras. O feio jurara de
morte o bonito e não só de boca para fora, na presença da amada, mas
nas noites de insônia, no escuro do quarto, sozinho no ódio do seu
coração. Levava horas pensando em como o mataria - picado de faca,
furado de tiro, moído de cacete. Só conseguia dormir quando já estava
com o cadáver defronte dos olhos, bonito e branco, ah, bonito não, pois,
quando o matava em sonhos, a primeira coisa que fazia era estragar
aquela cara de calunga de loiça, pondo-a de tal modo feia que até os
bichos da cova tivessem nojo dela. Mas como fazer? Não poderia começar a
brigar, matá-lo, sem que nem mais. Hoje em dia justiça piorou muito,
não há patrão que proteja cabra que faz uma morte, nem a fuga é fácil,
com tanto telégrafo, avião, automóvel. E de que servia matar, tendo
depois que penar na prisão? Assim, quem acabaria pagando o malfeito
haveria de ser ele mesmo. O outro talvez fosse para o purgatório,
morrendo sem confissão, mas era ele que ficava no inferno, na cadeia. Aí
então teve a idéia de uma armadilha. Botar uma espingarda com um cordão
no gatilho... quando ele fosse abrindo a porta. Não dava certo, todo o
mundo descobriria o autor da espera. Atacá-lo no mato e contar que fora
uma onça... Qual, cade onça que atacasse vaqueiro em pleno dia? E a
chifrada de um touro? Dificil, porque teria que apresentar o touro, na
hora e no lugar... Lembrou-se então de um caso acontecido muitos anos
atrás, quase no pátio da fazenda. O velho Miranda corria atrás de uma
novilha, a bicha se meteu por sob um galho baixo de mulungu, o cavalo
acompanhou a novilha, e em cima do cavalo ia o vaqueiro: o pau o apanhou
bem no meio da testa, lá nele, e quando o cavalo saiu da sombra do
mulungu, o velho, já era morto... Poderia preparar uma amardilha
semelhante? Como induzir o rival?... Levou quatro dias de pesquisa
disfarçada para descobrir um pau a jeito. Afinal achou um cumaru à beira
de uma vereda, onde o gado passava para ir beber na lagoa. O cumaru
estirava horizontalmente um braço a dois metros do chão, cobrindo a
vereda logo depois que ela dava uma curva. A qualquer hora passariam de
novo os dois por ali. E como só um passava pela verede estreita,
bastaria ele ficar atrás, apertar de repente o passo, meter o chicote no
cavalo da frente; o outro, assustado com o disparo do cavalo, se
descuidava do pau - e era um homem morto.
Mas não deu certo. Isto é, deu certo do começo ao fim - só faltou o fim
do fim. Pois logo no dia seguinte se encaminharam pela vereda,
perseguindo um novilhote. O bonito na frente, o feio
atrás, como previsto. Quando chegaram à curva que virava em procura do
cumaru, o de trás ergueu o relho, bateu uma tacada terrivel na garupa do
cavalo da frente, que já era espantado do seu natural, e o animal
desembestou. Mas o instinto do vaqueiro salvou-o no último instante.
Sentiu um aviso, ergueu os olhos, viu o pau, deitou-se em cima da sela e
deixou o cumaru para trás. Logo adiante acabava a caatinga e começava o
aceiro da lagoa. O bonito sofreou afinal o cavalo. Podia ser medroso,
mas não era burro, e uma raiva tão grande tomou conta dele, que até lhe
destruiu o medo no coração. Sem dizer palavra, tirou a corda do laço
debaixo da capa da sela, e ficou a girar na mão o relho torcido, como se
quisesse laçar o novilho que também parara várias braças além, e ficara
a enfrentá-los de longe. O companheiro espantou-se: será que aquele
idiota esperava laçar o boi, a tal distância? Claro que não entendera
como andara perto da morte... Mas o laço, riscando o ar, cortou-lhe o
pensamento: em vez de se dirigir à cabeça do novilho, vinha na sua
direção, cobriu-o, apertou-se em redor dele, prendeu-lhe os braços ao
corpo e, se retesando num arranco, atirou-o de cavalo abaixo. Num
instante o outro já estava por cima dele, com um riso de fera na cara
bonita.
- Pensou que me matava, seu cachorro... Açoitou o cavalo de propósito,
crente que eu rebentava a cabeça no pau... Um de nós dois tinha de
morrer, não era? Pois é assim mesmo... um de nós dois vai morrer...
Enquanto falava, arquejando do esforço e da raiva, ia inquirindo na
corda o homem aturdido da queda, fazendo dele um novelo de relho. Daí
saiu para o mato, demorou-se um instante perdido entre as árvores e
voltou com o que queria - um galho de imburana da grossura do braço de
um homem. Duas vezes malhou com o pau na testa do inimigo. Esperou um
pouco para ver se o matara. E como lhe pareceu que o homem ainda tinha
um resto de sopro, novamente bateu, sempre no mesmo lugar.
E o bonito e a feia acabaram casando, pois o amor deles era sincero.
Foram felizes. Ela nunca entendeu o que houvera, e remorso ele nunca
teve, pois, como disse ao padre em confissão, matou para não morrer.
E a moral da história? A moral pode ser o velho ditado: faz o feio para o bonito comer. Ou então compõe-se um ditado novo: entre o feio e o bonito, agarre-se ao bonito. Deus traz os bonitos de baixo da Sua Mão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário